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Conto
O Batismo do Soldado
A mata era densa, e o pouco sol que lá incidia penetrava através das fendas entre a camada de folhas e galhos retorcidos que cobriam a copa das árvores. Os tênues feixes difusos de luz garimpavam uma beleza que não havia no local, traçando na leve bruma uma atmosfera bela, entretanto melancólica. O homem caminhava com certa dificuldade, desviando-se das longas e entrelaçadas raízes que preenchiam o solo da floresta. Por vezes, tropeçava, e o longo tempo necessário para que se pusesse de pé denunciava seu estado de debilidade física. Mas sobre sua saúde mental não havia dúvida: o homem era são. O uniforme mais se assemelhava a um conjunto de trapos camuflados e já não possuía o brio patriótico de outrora; as botas empapadas de sangue novo e antigo, assim como os furos nas meias e a falta de sete de suas unhas dos pés, explicitavam que caminhara sem pausas por dias. Não reclamava. Sabia justo esse martírio, e nenhum “valha-me” fora proferido em relação a isso. Passaram-se dezessete noites desde a conversa com os aldeões de pele amarelada que apontaram o caminho redentório infundido a si mesmo. Fora incutido pelo ancião da aldeia a vagar pela beira do rio enredado na vegetação até encontrar sua nascente, e de lá ascender ao topo de um monte que permearia toda a paisagem, isso sem nada ingerir além da água proveniente das constantes chuvas. Logo então encontraria alguém que o faria tornar a ser o que era. Ao pôr do décimo oitavo sol, o homem percebeu o rio afilar-se de forma abrupta, um prenúncio de que a nascente se aproximava mais a cada passo. Então, junto ao júbilo raso que a ansiedade criara, de súbito um enfado brutal tomou-lhe o corpo; em um instante já se o via contorcendo em aflição. A cabeça rebatia nos galhos secos jogados no solo, e os braços dilaceravam o frágil tecido de seus trajes, de forma que em pouco tempo só lhe restara poucos fiapos pendurados sobre o pescoço e pernas. Lançado ao chão da floresta, em alguns segundos, desmaiou.
Era manhã quando recobrou a consciência, não se sabe de que dia, se do próximo ou do outro que viria após. Não se preocupou, retirou os restos de tessitura que se agitavam com o vento morno que soprava primeiro do leste e depois desorientadamente de todos os quadrantes. Agora já sem os grossos tecidos para camuflar sua aparência, podia-se observar uma carcaça em formato humanoide. Os olhos flutuando sobre imensos sulcos negros onde antes apenas olheiras casuais delineavam-se, duas longas fendas mergulhadas de cada lado da boca e extensas silhuetas em formato de espigas espremendo-se contra a fina camada de pele que restara em seu corpo davam ao homem um ar cadavérico. A intensidade do vento entregava o novo lugar em que se encontrava: o centro de uma clareira. Como fora parar lá, não é sabido, mas lá estava. Ao esfregar os olhos e esperar que novamente se adaptassem à luz do sol equinocial, girou a cabeça por sua volta para compreender onde estava. Quando fitou a grande mancha cinza à sua esquerda, seu coração novamente pulsou como nos momentos de ansiedade anterior. Com a visão recomposta, testemunhou, a cerca de treze metros à sua esquerda, um monte. Ainda no chão, admirou a imponência da rocha e sua imensa sombra projetada sobre a clareira. Ela se mostrava incrivelmente não natural, como se polida por mãos não humanas. Também não fora trabalho do tempo. A erosão e as intempéries – como é de conhecimento geral – não trabalham com valores absolutos e perfeitos. “Divinamente simétrica”, talvez essa fosse a melhor qualificação para o graal “DaVinciano” estocado no solo da floresta. As árvores acumulavam-se ao seu lado, mas à sua frente – ou o que ao menos aparentava sê-la – não havia nada que obstruísse um palmo de visão, nem resto de toco ou toco sozinho, apenas uma grama raríssima que preenchia a clareira. Aos poucos, esse homem que se vivo estava era apenas por piedade das Parcas, emergiu, e, vacilante, prosseguiu de pé. O relevo era íngreme o suficiente para exigir que se o escopo fosse alcançar o cume, fizesse escalando-o. Sentiu a parte frontal de seu corpo roçar na rocha. Ela era salpicada com musgo e pequenas plantas que raspavam suavemente em sua pele, projetando uma sensação de conforto que há muito não sentia. Com o resquício de energia que ainda restava, pôs-se a subir, mão ante mão, pé ante pé, prendendo-se nas fendas que claramente foram cavadas para facilitar o trabalho do escalador. Ao longo dos vinte e cinco minutos necessários para alcançar o topo, realizou pequenas pausas para observar o lado voltado à clareira. Era como um borrão verde pintado à óleo, já muito enegrecido pelo tempo, e que ia daqui até mais além do que a alma podia enxergar; era semelhante à dor que sentia: inalcançável, imaleável, e como se já estivesse lá há todo sempre, desde antes dos primeiros delírios cosmogônicos dos seres humanos que explicar o inexplicável tentaram. Num último esforço concentrado, impulsionou o frágil corpo para cima e deitou-se sobre o cume. Chegara ao objetivo, mas não o concluíra ainda.
O monte era perfeitamente plano e sua extensão incrivelmente maior do que aparentava de baixo. O homem soltou a força estocada, levantou e prestou-se a caminhar. Era como se um esquecimento agudo houvesse se abatido sobre ele, algo tão poderoso que esquecera até da própria morte. Essa, que se manifestava apenas invadindo os traços de seu rosto. Os passos eram lentos e o vento ululante quase o carregava para trás. Uma triste e desoladora falta de sensibilidade e de qualquer dignidade humana cobria o jovem rapaz. Não aparentava reagir de forma que não fosse instintiva a todos os estímulos do ambiente, como se movido apenas por uma vã busca sabe-se lá do quê.
Ele parou. Seu coração pulsou pela terceira vez em um ritmo descompassado. Fitou ao longe uma reentrância, e de imediato voltou a se movimentar, agora em direção ao pequeno espaço cavado na rocha. Arrastou-se vagarosamente como o moribundo que era, e chegou ao local almejado. A fenda era localizada próxima à outra extremidade do monte, e de lá era admirada a mesma paisagem que observara na subida: uma clareira e um oceano verdejante metros à frente. Seus olhos, então, postos de cima para baixo a fitar o buraco, denunciavam um primeiro traço de emoção no ossudo rosto. Uma trepidação incontrolável o impedia de se aguentar mais um segundo de pé. Ajoelhou-se e, então, as lágrimas fluíram, verteram pelos vales da face e pingaram no buraco, onde encontraram suas semelhantes. Ele chorou e chorou, como se a água da chuva que bebera ao longo do caminho desabasse em cascata de sua visão. E ele chorou ainda mais, até ser capaz de visualizar através do reflexo empossado por suas lágrimas, o sol que pairava por cima de sua cabeça. E ao olhar o sol, também se viu refletido, e ao se ver percebeu que encontrara aquele que poderia fazê-lo voltar a ser quem era: a morte. Seu rosto refletia a morte. Lembrou-se de como o seu pai o chamava: "Gabriel, você não é nada, não é ninguém"; e também lembrou do capitão Haart esbravejar as mesmas palavras um pouco antes de embarcar para Hanoi em 59. Recordou pensar ser alguém ao atirar em um família numa vila de amarelos três anos depois, mas a razão o abandonaria logo em seguida, para então andar sem rumo pelas florestas do Vietnã. Mas o que vinha antes disso? O quê? Não havia nada??
Não se via nuvem, todavia, precipitou-se uma branda chuva que terminou de preencher a rasa reentrância. Com as mãos em formato de concha lavou o rosto na água - seria ali seu batismo -, levantou-se e seguiu em frente. Seu chão fez-se o ar, então houve um hiato silencioso, seguido de um baque seco, duro, e sua memória afinal voltou. Recordou que foi um verme, um rei, e um homem antes de não ser mais nada.

Por Artur Siciliano
Estudante de Jornalismo, 23 anos, carioca e fundador deste site. Apaixonado por video-games, literatura, cinema, esportes e que sonha em atravessar o Oceano Pacífico de barquinho, apertar a mão e dar um tapinha nas costas do Tarantino e ressuscitar George Orwell e Carl Sagan.