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Conto
Sobre a Luz que Atravessa
I
Eram tantos os homens e mulheres que pisavam na travessa, cada um com sua história particular. O que guardariam essas pessoas? Teriam elas tantos segredos quanto eu? O quê não contam nem para seus mais íntimos amigos, compadres, chegados? Não sei, mas posso supor. Olhem lá aquela moçoila elegante, caminhando sobre dois belos saltinhos escuros e um vestido deveras comportado. Em quantos são os espartilhos que deve acumular em seu guarda-roupas secreto na Mem de Sá? Muitos, sem dúvida. O marido, cirurgião dentista de renome na elite carioca, nem desconfia que os muitos amantes a visitam periodicamente e contemplam cada vez mais sua cabeça com córneos de dar inveja a qualquer antílope africano. O pobre acredita na desculpa estapafúrdia que lhe é contada todo santo dia: "mamãe já não pode mais ficar sozinha, e não confio nessas enfermeiras de cor. Por isso a visito sempre. René, não quer o bem de sua sogrinha?" Lasca-lhe um beijo na boca e sai num passo firme, sem olhar pra trás, chora um tanto no caminho e depois do ato profanado. Apesar de tudo, ama o marido. Marido este que aposentou-a do hábito nefasto que cultivava de vender-se barato pelo prazer das mais degeneradas figuras da Lapa e adjacências; todavia não a livrara de corpo e alma da antiga profissão. Agora, por puro diletantismo, a mulher enche o antigo apartamento com os mesmos bêbados e desdentados a fim de satisfazer seus desejos carnais a troco de algumas compensações mais peculiares do que poucos cruzeiros. Não misturemos aqui dois conceitos distintos, esta mulher não era um desses tipos a quem chama-se ninfomaníaca, gostava do ato sexual, de certo como qualquer outra, nada além do normal. O que faz de nossa dondoca uma espécime diferente das convencionais é o que ela cobra a quem clama por seus serviços: histórias.
"Vá, me conte algum segredo, de preferência que ninguém mais saiba.", costuma dizer, deleita-se com os mais diversos relatos saídos da boca desses homens. Não sei se é odor de hálito etílico ou se as histórias lotadas de sangue, suor, e sexo, por si só tem o poder de entorpecer todos os sentidos da ex-meretriz. Seu ouvido abarca fatos que antes somente padres na cabine dos confessionários de suas igrejinhas e os inspetores criminais em suas salas de interrogatório outorgaram o desprazer de possuir. Estaria a sujeira de anos de trabalho ímpio e blasfemo encrustada a tal ponto em sua pele que já não haveria como as águas do matrimônio cristão limparem? Há como saber? Talvez seja apenas uma imersão para o estudo do comportamento da massa vagabunda dos becos escusos da cidade. Eu não sei, mas essa mulher sabe de muita coisa...
Certa vez ouviu um desses contos do vigário, da boca de um rabugento homem chamado Mário. Dizia ele que periodicamente descia de Volta Redonda à Guanabara para se tratar de uma dor crônica nas costas. Mário afirmara que numa dessas vindas casuais quase perdera tudo em uma fézinha com o próprio Pai dos Pobres. O homem apostou a casa, os carros e até a senhora sua esposa; Getúlio apostara o país. Pelo bem ou pelo mal, o homem, como todos sabemos, perdeu. Talvez um bêbado inescrupuloso administrando nossas terras seja o que precisemos de mais agudo, já que os senhores do Thopos não são capazes de lidar com nossa vasta gama de problemáticas crônicas há tanto tempo. O homem rendeu tudo à Getúlio, esse que por sua vez recusou casa e carros, para apenas levar a esposa, que ponhamos assim: não pode-se dizer que fora a contra-gosto - podemos, neste momento, embasar aqueles que diziam que o ex-ditador era um garoteiro de mão cheia - , raivoso com tal disparate, o perdedor passou meses desenvolvendo um plano infalível para obliterar a figura do Presidente dos percalços mundanos. Com o plano arquitetado, partiu para o ataque, com um revolver cubano de ferro oxidado armou uma trincheira num beco próximo a rua Tonelero em Copacabana, e disparou contra Carlos Lacerda e Rubens Florentino, enquanto saiam de um famoso bordel das redondezas. Desafetos declarados e figuras altamente conhecidas publicamente, a morte do primeiro e a tentativa de assassinato do segundo ecoariam até o palácio Guanabara, e logo encontrariam as mãos de Getúlio como responsável por brutal enfado. Pressionado pela imprensa e pelos militares à renunciar, Getúlio daria cabo da própria vida duas semanas depois."O homem só pensava em dominar. Eu tirei-lhe o poder da pior forma possível, e os fantasmas me assombram até hoje", balbuciou o homem ao término de sua história, enquanto abotoava o blusão e passava pela porta de saída acenando com a cabeça em sinal de despedida.
Em grande parte das vezes, as histórias eram tão ou mais incríveis que essa que acabaram de ler. Traficantes de bebidas, ladrões, fugitivos, apostadores inveterados, entre outras figuras problemáticas pareciam possuir tino para se envolver em desventuras mirabolantes ou serem detentores de uma criatividade além da convencional. Também em grande parte das vezes em que os homens finalizavam os relatos, era visível como esse ato de alguma forma confortava suas almas culpadas e já condenadas à cozinhar por todo o sempre nos caldeirões infernais do tártaro. Ali, naquele quartinho localizado em uma avenida inquieta da Lapa, encontram alguém que não os julga e condena por seus crimes, mas faz apenas escutar e escutar, sem esboçar nem um mínimo princípio de palavra. Seria a mulher uma espécie de Santidade às avessas? Rebelando-se contra o panteão de donzelas que só souberam sofrer e morrer de tantas formas? A opinião pública responderá, quando alguém acabar por delatar a pobre mulher. Enquanto não chega o momento, ela perdurará na Mem de Sá, escutando os causos daqueles que foram esquecidos ou que querem esquecer de muitas coisas.
II
Doravante focaremos no senhor a minha direita, sentado no mesmo banco e já no quinto cigarro seguido. Semblante de culpa. Quem imaginaria que esse homem de cabelos ralos e magro como um calango, arrastaria um fardo tão pesado sobre suas costas ossudas? Eu imaginaria.
Jovino carregou os muitos pacotes de pregadores - desses tradicionais de madeira - e os depositou na caçamba de sua caminhonete velha e barulhenta, para levá-los do porto à Petrópolis, vereda essa que conhecia bem por realizá-lo ao menos uma vez na semana. Para protegê-lo durante os trajetos, Jovino enrolava um terço na mão direita e rezava três vezes à Padinho Ciço para que vale-se por ele no caminho. Depois pendurava o terço no retrovisor interno afim de manter a segurança e confiança. Não prendendo-o tão firme quanto de costume, decretaria neste momento, neste exato e singular momento, sua penitência eterna. Jovino iniciou o percurso pouco antes da meia noite, e chegou ao pé da serra uma hora e uns tantos minutos depois. Embicou na subida e seguiu a estrada mal iluminada tranquilamente, com os faróis farejando o que vinha pela frente. Já próximo de chegar no ponto mais alto da estrada, atravessou na sua frente, de súbito, um pequeno mico. Jovino - cristão convicto - jamais mataria a esmo um bicho tão estimado e trabalhado por Deus, guinou para a esquerda e o pneu cantou ao desviar, fugazmente escapou de estraçalhar o pobre animal e depois ainda de cair penhasco abaixo. "Avemaria, mas quase que é o fim", soltou em alto e bom som, foi prosseguir a reza de agradecimento, mas cadê que achava o terço de Padinho Ciço? Olhou para o chão do carro, do lado da caixa de câmbio, lá estava ele. O terço minguava e ameaçava cair num buraco do chassi remendado que dava pro chão da estrada. Jovino, em um ato desesperado abaixou a cabeça e lançou o braço direito em direção ao objeto. Foi quando ouviu o baque e o barulho ameaçador do vidro frontal rachando. Já com o carro parado depois de uma freada mais do que brusca, atônito, saiu vagarosamente do automóvel e dirigiu-se àquele corpo estático no asfalto.
Uma fumaça sobrenatural envolvia o ser caído na estrada, ao aproximar-se pôde assimilar os formatos e feições, era um homem, e bem mortinho. Danou-se! Jovino não sabia o que fazia, andava à frente e retornava, balbuciava e logo depois gritava: "O que vai ser de mim, tenho tanto dos filho pra criar";"Acorda nego véi, morre assim não," dirigia ao falecido essas palavras; em vão, ninguém lhe responderia. A fumaça estranha, percebeu, provinha da mão direita do defunto, uma visão mais apurada mostrava um objeto preso ao dedos, era um cigarro, e havia acabado de ser acendido, pelo visto. Ajoelhou-se e cutucou o homem, sem resposta, sentou ao seu lado e prestou a chorar. Chorava ao pensar nos filhos e na mulher que deixara em São Cristóvão, e como seria deles se o mandassem cortar batatas na prisão; chorava ainda mais quando pensava nos filhos e na mulher do falecido. Mas ele não podia dar-se o luxo de ser trancafiado numa cela enquanto tantos dependiam dele, e foi exatamente isso o que ele fez. Cortou o choro, vasculhou os bolsos do recém-ascendido e não encontrou nenhum documento, nada que indicasse quem ou de onde viera, aquilo aliviara seu desespero por ora; levantou-se rapidamente, respirou fundo, passeou os olhos por todos os quadrantes e então arrastou o cadáver até um vão entre uma grade de proteção e outra no beiral da estrada, postou a cabeça a olhar para baixo, um precipício o fitou de volta, e foi aí que lançou o corpo rumo a escuridão. Quando Jovino deixou de ouvir o som do resvalar de carne na vegetação, então vislumbrou novamente a estrada.
Ao retornar o passo ao carro percebeu que o cigarro permanecera estático no asfalto, fitou-o por alguns instantes, observou a fumaça dançando lentamente através do ar orvalhado e as imagens fractais que ela formava. Uma lufada de vento gelou-lhe a espinha, levando junto a fumaça para o alto, como se acompanhasse a vítima de seu crime ao paraíso que chegaria cedo demais ao infeliz. Jovino que nunca havia fumado, daquele dia em diante fumaria todos os dias até o fim de sua vida. Começou pelo cigarro do desconhecido. Como penitência por ter retirado a vida d'outro homem, encurtaria o tempo de sua, resolveu punir assim a si mesmo, já que a punição dos homens seria demasiada cruel com aqueles que nada tinham a ver com o ocorrido. Retirou o vidro da frente da caminhonete e, entre uma tragada e outra, prosseguiu viagem.
III
De volta, perseguindo os passos dos que vagueiam por aqui, pela última vez, já que está perto de anoitecer, noto uma senhora carregando umas sacolas, de jeito curvado, decrépito e que qualquer doutor de bom conhecimento apontaria não mais que algumas semanas de vida. Carmem não possui entes vivos e fora viúva cedo. Antes de trazer herdeiros para o mundo dos homens, seu marido fora abocanhado por uma tuberculose que o definhou e encurtou-lhe a vida abruptamente. Jurou que nenhum outro homem a tocaria como o falecido a tocara, e assim foi até hoje. Tu te perguntas: o que pode ocorrer a mente de uma mulher que passa tantas décadas sem conhecer o toque de um homem? A carícia tenra de um filho? As conversações descompromissadas de uma amiga? Talvez a loucura.
Sua pequena casa em Olaria, enlatada entre uma igreja e um bordel, exprimia em concretude a peleja alegórica entre Deus e o Diabo. Trancada a todos, nenhuma viva alma adentrara seus domínios desde a cerimônia fúnebre do falecido. A porta é ornamentada com dezenas de trancas diferentes, cadeado sobre cadeado. Os vizinhos notam facilmente sua chegada ou saída, devido ao ruído único dos metais arrastando uns nos outros. Perguntam-se o quê de tão importante e confidencial aquela mulher poderia querer longe dos olhos de todos. Durante um bom tempo as possibilidades foram motivo de longas discussões; cadáveres, ossadas, altares com imagens bestiais e muitas outras hipóteses eram levantadas diariamente, até já não se importarem mais, em parte devido a dificuldade de acesso ao lugar e à dona dele, e por terem problemas demais em que ocupar as mentes. Não há ninguém ali que tenha trocado mais do que uma conversa fática com a mulher: "bom dia, vizinha!" falavam, "bom dia", xoxamente, respondia, e prosseguia em sua caminhada diária até onde ninguém sabe, sempre de cabelos bastante úmidos. Voltava com sacolas cheias e o conteúdo muito bem escondido mumificado entre jornais antigos, levava uns bons minutos até destrancar por completo a porta, e enquanto o processo ocorria, amontoavam-se os curiosos nas calçadas próximas, esses que por sua vez disfarçavam os olhares e diminuíam o passo a fim de capturar uma única imagem reveladora do interior da pequena casinha, todas as vezes sem sucesso, já que a brecha entre ela e a porta era minuciosamente precisa, suficiente apenas para permitir a passagem única e exclusiva do seu pequeno corpo e seus pertences.
Quem acreditaria que a única pessoa viva a testemunhar o maior segredo do bairro seria um garoto miúdo feito Herculano? Filho de feirantes migrados de Areia Branca, passava boa parte do tempo trotando pela vizinhança com seu gato, mais conhecido pela alcunha de "Jiló". Assustou-se quando caíra em seus ouvidos a história de uma velha bruxa que vivia em um casebre na esquina da Uranus, mais ou menos duas quadras de sua casa. Logo após o medo, atiçou-lhe a curiosidade, posto assim resolveu investigar a veracidade do que lhe fora contado. Prestou-se a investigar Carmen, fazia plantão em frente a sua casa, de dia até o finzinho da tarde. Sentado junto ao armarinho do seu Ezequiel. Não perdia a oportunidade de seguir a velha decrépita até o mais longe de casa que poderia ir, um ponto de ônibus a quatrocentos metros de sua casa. "Ramos - Praça XV", essa é a lotação que Carmen pegara na época e pega até hoje ao menos uma vez na semana, e nela que volta com as embalagens estranhamente camufladas. Já que não poderia segui-la até o destino final, não levou muito até perceber que deveria ser mais efusivo em sua abordagem. Conhecia os riscos, mas mesmo assim prosseguiu num plano paulatinamente elaborado.
Em uma quarta de finados - nota-se aqui o avistar de uma dessas coincidências prosaicas -, Sabendo que a velha havia acabado de entrar em casa, com seus habituais pacotes enrolados, Herculano, que mantinha um posto de observação do outro lado da rua, bateu na porta quatro vezes, com pausas de um segundo entre elas, sem resposta. Mais quatro batidas, nada. Então, gritou: "Dona Carmen, deixou cair na rua suas coisas.", prontamente ouviu o tintilar dos ferros, dobradiças, cadeados se abrindo em velocidade impressionante, até depois de eternos um minuto e meio, ouvir o júbilo da madeira velha e trincos enferrujados, a porta abrira cerca de dezessete centímetros, e dois olhos compenetrados surgiram da fenda, pendendo em um rosto enrugado e irritado. "Dê-me as coisas, menino, ande." sussurrou a velha, estendendo a mão ossuda para fora do lugar
Herculano viu aí o momento de agir, e então arremessou por entre a fenda um jornal empapado com restos de peixe que colhera da panela no almoço, Em disparada, o gato Jiló, que jazia deitado entre as pernas do menino, ultrapassa os limites da porta e invade a casa de Carmen. A velha parte em perseguição ao bichano e escancara a porta para a entrada em calmaria de Herculano. O garoto não nota, é claro, mas jazia em uma sala com paredes decoradas com quadros que demonstravam um gosto muito sofisticado pela arte, Goya, Moneut, e Picasso testemunhavam Herculano escapando das mãos da velha sem muita dificuldade, e correndo por toda a extensão do ambiente. Carmem urrava e balbuciava palavras intangíveis, enquanto corria debilmente atrás do invasor. Por dentro era tão pequena quanto aparentava, dois cômodos, a sala, aonde ocorria a perseguição de ordem lenta, e um outro ambiente que se separava deste através de uma cortina de lantejoulas negras, e foi pra lá que o garoto se dirigiu. Passando em alta velocidade por entre a divisória, parou e gelou ao notar o que lhe aguardara. Só havia visto uma vez aquilo, mas sabia bem o que significava, era um caixão, e estava aberto.
O cheiro era perturbador, e os olhos do menino lacrimejavam devido a ardência causada pelas caixas de formal acumulado em litros e mais litros. Enquanto ouvia o ressoar arenoso da velha arrastando o pé no piso de madeira para alcança-lo, debruçou-se sobre o caixão e observou o seu interior. O coração em ritmo frenético e os poros gotejantes foram completados pela feição aterrorizada que se seguiu à observação do conteúdo da última cama dos homens, porém não era uma figura humana que jazia no caixão, era um gato, mas não um gato qualquer, aquele era Jiló. O gato que consolara Carmen durante onze longos anos após a morte do seu tão amado marido; o felino que nunca havia dado um passo rumo à liberdade das ruas em sua existência física. Mesmo em morte, lá permanecera; mas seu espírito articulosamente criara um impulso curioso em Herculano, para assim, voltar a casa que tanto amara em sua era no plano terrestre.
Não se interessem pelo fim desta história, pois assim é onde é satisfatório terminá-la. Deixo-vos no momento em que a noite começa a apagar os muros, prédios e ruas da cidade, permitindo à luz frágil dos postes parisienses que sejam por dois quartos de hora, os sóis maiores deste lado do oceano atlântico. Todavia, deixo-vos com um registro em mente, coisa boa para se pensar. Dessas três estórias, há uma que garanto a veracidade, tão fatual quanto a dor que se sente ao fisgar-se em espinhos ou partir um membro. Cabe lembrar às mentes dos materialistas e pragmáticos, que o plano dos supra-naturais permanece intangível até ser descoberto como não mais que uma característica deste mundo. É demasiadamente fácil contar verdades a desconhecidos, e é por isso que secreto-lhes o que uma vez fora a mim secretado. Como sei destas coisas? Sei pois sou uma dessas intangibilidades, sou o pai da mentira lançando-lhes uma verdade.

Por Artur Siciliano
Estudante de Jornalismo, 23 anos, carioca e fundador deste site. Apaixonado por video-games, literatura, cinema, esportes e que sonha em atravessar o Oceano Pacífico de barquinho, apertar a mão e dar um tapinha nas costas do Tarantino e ressuscitar George Orwell e Carl Sagan.